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European Architecture since 1890 não é só um livro de história, é um manifesto por uma Europa inclusiva e aberta. Com um único senão: está a acabar. 

 

Num particular momento de crise na Europa, em que a fragilidade das finanças e economias de alguns países periféricos se tornou notória, e em que a solidariedade inter-europeia se revelou igualmente frágil, chega-nos, em contraciclo, European Architecture since 1890, de Hans Ibelings, crítico de arquitectura holandês.  

Para lá dos muitos méritos e de algumas críticas que se possam apontar é preciso sublinhar desde logo a ambição deste livro, que reside não exactamente no quadro académico mas no plano político e cultural. Ibelings tem uma estratégia bem delineada e várias vezes reiterada ao longo do texto: fazer uma leitura geograficamente inclusiva e democraticamente distribuída do que propõe como “arquitectura europeia”. A Europa é um espaço e um conceito cultural de difícil definição, como vai anotando. A hipótese de Ibelings é a mais alargada e generosa: vai até aos Urais e compreende os espaços extremos de “Santa Cruz de Tenerife até a Luleå e de Dublin até Ankara” (p. 20). Na prática há um descentramento da Europa para leste, recuperando também experiências esquecidas no extremo ocidente: Portugal, muito particularmente.

Ainda antes de ser um livro de história, European Architecture since 1890 é a proposta de um novo horizonte geocultural para a definição de arquitectura europeia. Ibelings argumenta que nos livros de história de arquitectura, “Europa” significa quase sempre Europa ocidental. Noutro contexto, quando afirma que Portugal não existe “antes de Álvaro Siza e da Escola do Porto” (p. 114) toca num nervo.   

European Architecture since 1890 tem então como primeira missão ampliar e democratizar o entendimento de arquitectura europeia. Deste modo, a leitura de Ibelings pertence assumidamente a um quadro cultural determinado pelo pós-guerra fria (p. 107), que lhe permite ler sem ansiedade as arquitecturas do socialismo e do capitalismo; e pelo pós-modernismo, que lhe dá o relativismo e a maturidade para incluir exemplos sem ter que seguir a “linha justa”. O resultado é uma abordagem aberta e conciliadora, horizontal e pragmática, sem os dramas das dicotomias moderno versus tradição ou norte versus sul. O único drama que Ibelings aponta, como veremos, está ali mais à frente no futuro da Europa que se começou a desenhar nos últimos anos.   

 

A arquitectura europeia é um assunto público

Uma das características que Ibelings entende como definidoras da arquitectura europeia é o seu carácter público (p. 17). Por vezes, mesmo quando decorre da iniciativa privada. Esta componente pública, identitária e colectiva, é-nos proposta como transversal a regimes socialistas e capitalistas, a governos que dão maior ênfase ao Estado ou à sociedade civil. Isto é, relativizando a origem e os objectivos, desvalorizando as motivações do encomendador, a arquitectura europeia do século XX é vista, neste livro, como sendo construída em função da população e da criação de espaço público. 

Dir-se-ia que Ibelings estende a sua perspectiva social-democrata a regimes que o não foram, à esquerda e à direita, para ficar só com aquilo que é a performance pública dos edifícios. O trágico, e até o tenebroso, que algumas destas arquitecturas traduzem é suavizado por uma espécie de velatura social-democrata: é no espaço público; é um determinado estilo; é uma nuance da arquitectura europeia. 

A abordagem “transnacional” e “pan-europeia” (p. 9) que Ibelings adopta significa que não há capítulos dedicados às nações nem a particulares divisões fronteiriças. Pelo contrário, o que move o autor é a ligação, a conexão, a analogia de situações aparentemente opostas.

Por isso, na Europa deste livro não há espaço para as catástrofes humanas, as bizarrias políticas, os modelos de dominação cultural e territorial, que, todavia, marcaram o século XX. Por exemplo: Ibelings afirma existir um paralelismo entre as movimentações arquitectónicas no espaço ocidental e nos 40 anos do Bloco de Leste (p. 204); ou entre a monumentalidade em estados totalitários e democráticos (p. 149). Nestes casos, a estratégia de horizontalizar a história da arquitectura europeia – de a tornar um campo interpermeável e conectado – parece mais desejo do que realidade. É possível, pelo contrário, conceber uma história onde as diferenças leste/ocidente, democrático/totalitário surjam como abismais: não se imagina, a leste, a pura deriva que nos leva, nos anos 1950-60, da Torre de Velasca ao Fun Palace ou da Casa do Futuro à Casa alle Zattere. Nem, colocando-me para lá dos exemplos citados pelo autor, a monumentalidade de Albert Speer pode ser colocada no plano de uma “nova monumentalidade” com que os arquitectos modernos procuraram ganhar terreno cultural a partir dos anos 1940. 

A “União Europeia” que Ibelings projecta neste livro é evidentemente feita por conexões mais do que por rupturas, que existiram, que deixaram marcas, que continuam a existir. Mas neste tempo de cortes e de ratings apetece deixarmo-nos surpreender pelo autor e seguir este monumento contínuo europeu, miraculosamente sem cicatrizes, fixado porventura no lapso temporal entre a queda do Muro de Berlim e antes do 11 de Setembro.  

 

Ir para Leste

De facto, Ibelings, sendo holandês, ocupa uma geografia apropriada para este redesenho inclusivo: está sentado no centro da Europa, num dos pólos mais activos da cultura arquitectónica contemporânea, e pode olhar para leste e para ocidente, para o norte e para o sul. Nesta visão a 360º, a Europa surge como um continente complexo e variado, mas sintonizado nesta demanda pública e experimentalismos estilísticos. 

Sendo generosa, esta abordagem de European Architecture since 1890 comporta riscos, como é natural. Nomeadamente o de, querendo desenhar uma nova simetria europeia, carregar excessivamente nos tons de leste. Mas esse é um risco evidente e assumido. O problema mais profundo é que essa nova simetria é tentada à custa de um encontro a frio entre uma história muito conhecida (a do “ocidente” e da arquitectura moderna) e uma história essencialmente desconhecida, como é a da arquitectura a leste. A obra de um qualquer arquitecto do Movimento Moderno tem uma genealogia que a suporta; o mesmo não acontece para o grosso dos arquitectos para lá da “cortina de ferro”. Por isso, marcada por décadas de historiografia, a assimetria permanece, mesmo que Ibelings se esforce por carregar nos traços a leste, e retocar outras faces escondidas.

Há já uma evidente discriminação positiva destas arquitecturas, de acordo com as intenções do autor. Mas para que alguma espécie de equilíbrio fosse encontrado seria necessária uma maior informação contextual e enquadramento histórico do lado “desconhecido”, o que tornaria o livro, convenhamos, totalmente desequilibrado. 

Nesse sentido, embora exemplarmente pioneiro na abertura geocultural que propõe, European Architecture since 1890 não tem a “consistência” que repetir os mesmos lugares comuns sobre o Movimento Moderno seguramente lhe garantiria. É exactamente esse tipo de “consistência” que refuta, criticando a historiografia que o precede e recusando, até na estrutura entre o temático e o cronológico, o convencional de um livro de história. Como o próprio Ibelings sintetiza: “É talvez mais rigoroso” ver este livro “não como uma história da arquitectura europeia do século XX, mas como uma ideia de uma história transnacional dessa arquitectura europeia.” (p. 119)

Para cumprir os seus objectivos mais profundos, teria de estabelecer a genealogia das arquitecturas de leste e de outras arquitecturas escondidas, em paralelo com uma história desconstruída da arquitectura da Europa “ocidental”. É isso que este livro esboça e abre, sem fechar nem resolver, naturalmente.

 

A abertura do pós-modernismo

Outro dos pontos centrais da abordagem de Ibelings é a dessacralização da centralidade da arquitectura moderna na história do século XX, um dos reflexos directos da cultura pós-modernista dos anos 1980. Como o próprio afirma, “a relativização e nuances do pós-modernismo [em relação ao moderno] foram um importante ponto de partida para uma diferente leitura da história” (p. 110).

(Já agora, um parêntesis: É isso que alguns continuam sem perceber –
sem a cultura pós-moderna, a arquitectura portuguesa seria sempre entendida como menor.)

Às vezes, Ibelings é talvez demasiado enfático nessa desconstrução da presença do moderno. Como quando diz que é dada uma “atenção desproporcional [ao Movimento Moderno] tendo em conta o pequeno grupo de arquitectos envolvidos e o apenas ligeiramente maior número de clientes” (p. 153). Como se a história fosse algo meramente estatístico ou quantitativo. Mas este esquematismo é compensado por alguns bons argumentos: seguramente faz algum sentido quando propõe a art deco como o verdadeiro “estilo internacional” (p. 163). No entanto, a tendência é sempre a desvalorização da importância do Movimento Moderno em nome da existência de outros movimentos e de outros estilos que se entrelaçam e criam edifícios mais presentes e impactantes no espaço público. Claramente, Ibelings gosta dos “underdogs”, das “outras tradições”, dos estilos mais camuflados, das direcções menos óbvias; principalmente quando estas acabam por ganhar expressão pública.

Mas mais uma vez, nessa abrangência horizontal de tudo incluir – e de com isso muito descentrar –, dir-se-ia que Ibelings não dá a necessária ênfase a obras carismáticas ou cismáticas, peças-chave nas acelerações da história da arquitectura europeia. O “De Stijl” ou a Escola de Amesterdão, por exemplo, para referir episódios de arquitectos com a nacionalidade de Ibelings, não têm expressão no livro (o que nos leva a questionar se será por isso mesmo...). E nesse afã de repudiar a história canónica ou moderna do século XX, obras de Le Corbusier, como o convento de La Tourette ou a igreja de Ronchamp não são sinalizadas, o que é, no mínimo, discutível.

Há, de facto, nesta abordagem uma certa atracção pelo populismo, pelas arquitecturas que remetem para uma convergência do colectivo, em detrimento do elitismo e das expressões de pequenos grupos com tendências messiânicas. Isto é, na versão igualitária que European Architecture since 1890 propõe, em que o moderno é o que “expressa tempos novo” (p. 160), são desvalorizados os momentos que aceleram a história em favor de uma abrangência cultural e geográfica que distingue arquitecturas com expressão pública, exemplos de uma história partilhada por todos. 

 

Portugal e o fim

É por aqui que Portugal tende a entrar neste livro, para lá de Siza e da Escola do Porto, que são aliás referidos em boa conta. Ibelings faz várias referências às arquitecturas “tradicionalistas” e às veleidades portuguesistas de Raul Lino, Cristino da Silva ou Cottinelli Telmo na Alta de Coimbra, em nome de uma “outra história” do século XX. Há aliás, a este propósito, uma interessante e reveladora hesitação na tradução de “português suave”, que surge primeiro como “soft” (p. 68) e depois como “sweet” (p. 132). Aceitam-se alternativas.

Por outro lado, a alusão à arquitectura das colónias portuguesas em África sinaliza algo que começa a ser evidente: a história da arquitectura europeia envolve também a arquitectura luso-africana.

Por último, resta referir que este livro tem também uma narrativa que o suporta: o período tratado, a que Ibelings chama um “século XX longo” (1890-2010), corresponde, segundo o autor, a um tempo de abundância e de crescimento demográfico que está a terminar ou que já terminou. Seguramente nem sempre foi assim no século XX. Mas o ponto é que há hoje uma mudança estatística nesses dados que remete para um “encolhimento” e declínio da Europa. Nesse sentido, Ibelings conclui “que é natural que menos edifícios sejam construídos no futuro” e que “os edifícios que já estão construídos tenham cada vez menos procura” (p. 220). Podemos acrescentar que as razões desta decadência não são só intrínsecas, mas também extrínsecas: a expansão (cultural, económica) da América já desde os anos 1950; e agora da Ásia, desde os anos 1990. 

E, portanto, um livro com uma grelha optimista de análise é acompanhado por uma narrativa algo sombria. De qualquer modo, a Europa que é apresentada em European Architecture since 1890 é de todos e para todos. E só isso é um alívio, um pouco de luz. A partir de agora, o futuro da Europa tem de ter em conta a história que nos é apresentada neste livro.|

 


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